Semana passada, a Renata Aymoré escreveu (muitíssimo bem) sobre Georges St-Pierre, seu lutador preferido. Inspirada pela bela homenagem dela, e embalada pela vitória espetacular de ontem (sábado), decidi escrever sobre o meu lutador preferido: Lyoto Machida. Quem me conhece sabe que não é de hoje que sou completamente fascinada pelo Dragão (a quem carinhosamente me refiro como “Lyotuxo Linduxo”), por inúmeros motivos. Sendo que a maioria deles eu sequer sei explicar. Por que você torce por certo time, curte certo filme ou quer ouvir certa música no seu casamento (“Endless Love” não, peloamordedeus)? É o tipo de pergunta que só dá para responder até certo ponto. Mas eu vou tentar, da melhor maneira que consigo, contar para vocês porque acho Lyoto Machida simplesmente foda. Digdin digdin.
Lyoto é diferente. É diferente na postura, na base, no porte, na movimentação. “É o karate”, vocês vão dizer. Também, claro. Mas a maior parte é Lyoto. Mais especificamente, cabeça de Lyoto. Chinzo, dizem por aí, tem mais karatê que o irmão, mas não tem o mesmo MMA (nem perto, mal ae). Tem base parecida, inclusive. Mas não se move igual. Não sai igual, não contra-ataca igual e não pensa igual. A verdade é que ninguém pensa igual ao Lyoto dentro do octógono. E é por isso que ele foi aos poucos ganhando ar de lenda, de criatura mística, de coisa meio sobrenatural. Lyoto, e disso soubemos desde cedo, era diferente.
Mas ele pagou um preço por isso. Ser diferente nunca é fácil. E todo mundo que já comeu mirabel de morango sozinho no recreio sabe disso. “Prego que se destaca toma martelada”, é o ditado. E Lyoto já tomou lá suas marteladas na cabeça. Antes de virar lenda, bambeou no UFC. Invicto. Porque “não nocauteava”, porque “não era incisivo”, porque “fugia da luta”. Rodando de um lado pro outro, trabalhando por fora, com aquela base esquisitinha. Lyoto parecia a criancinha meio desconjuntada com um talento que ninguém conseguia entender muito bem ainda. O que queriam era nocaute. Só isso o separava do cinturão. E então era isso que ele ia fazer. Thiago Silva, coitado, não deu nem pro cheiro. Aí vinha Rashad Evans. Era pra ser O cara, A luta. Não deu nem tempo. Rashad sucumbiu como uma bonequinha de pano, deixando ali o título, um pouco da dignidade e uma foto que vai entrar para a posteridade como uma das mais comicamente medonhas do UFC.
A criancinha prodígio cresceu e virou gênio gente grande. E com um quê de popstar. A matéria da Rolling Stone inaugurou uma era para o MMA brasileiro. O “briguento do vale-tudo com orelha de couve-flor” dava lugar ao atleta esforçado e articulado. Lyoto não sabia se mover só dentro do octógono. Sabia se mover fora dele, com os repórteres, com os fotógrafos, com os fãs. Lyoto começava a fazer no Brasil o que atletas como Randy Couture e Georges St-Pierre faziam lá fora. Virou porta-voz. Era capaz de vestir um terno e parecer confortável dentro dele. Poucos reconhecem o que isso significou para o nosso MMA. Como alguém que está fazendo uma monografia sobre o assunto, posso afirmar: significou muito. Um lugar numa revista de variedades era sinal de novos tempos. E precisávamos de alguém com o fator-surpresa dentro do octógono e o fator-eloquência fora dele para criar isso.
A lua-de-mel durou menos que o esperado. O problema de se chegar ao topo é o número de gente que está só esperando você cair. Lyoto virou muito mito, muito estrela, muito rápido. Era questão de tempo. Começou com Maurício Shogun, parte I. Luta linda – minha preferida de todos os tempos – com dois grandalhões que mantiveram um ritmo louco por cinco rounds. Sem um único momento de chatice. Ou era estudo, ou era porrada. Nada de agarração chata pra ganhar tempo. Nada de “travar pra respirar”. A luta depois foi definida com um clichê brabo: “O Tigre o Dragão”. Mas, bem, alguns clichês são clichês por um motivo – e esse teve muitos. O tipo da luta que qualquer um podia ter levado. Pra mim, foi Lyoto. Pros juízes, também. Mas pra muita gente não foi. E lá foi aquela coisa ignorante, de culpar o atleta por uma decisão dos jurados. De achar que Lyoto tinha “roubado” a vitória. Revanche? Partiu. E lá foi Lyoto tentar mostrar pra todo mundo que merecia aquele metal na cintura.
Lyoto sempre se alimentou de crítica. Em uma entrevista que fiz com o Dragão (mesmo por telefone, eu tremia e suava como uma suininha, até a voz dele intimida, impõe, que pessoa foda), ele explicou isso.
“Sempre procurei encarar a crítica como importante para o meu crescimento. Quando ouvimos críticas, ainda mais de especialistas, é sinal de que está faltando algo. Por isso, procuro analisar e melhorar, sem ficar chateado.”
Lyoto comeu as críticas, digeriu e entrou para a segunda luta com o peso do mundo nos ombros. Se me perguntarem, digeriu demais. Cerebral e cauteloso, Machida é um daqueles lutadores amaldiçoados com o fardo de pensar demais. Maldição, eu digo, porque não vai deixá-lo nunca. Faz parte do que ele é. A luta começou bem. Shogun tava com o – lá vem o clichê de novo – olho de tigre. Mordido. Mostrou a que veio e lá foi Lyoto conhecer a derrota pela primeira vez. E sem cinturão. Para alguns, ficou o senso de “justiça”. Para outros, o de tristeza, de pena… Pra mim, ficou a expectativa de ver o que o Dragão ia preparar pra gente. Respirei aliviada quando vi que era o “Rampage” Quinton Jackson. Admito, subestimei. E lá foi Lyoto mostrar que, ao contrário do que estavam falando, não tinha perdido a verve. O enigma não estava decifrado. Não é porque um lutador o encontrou que todos iam encontrá-lo. Fiquei nervosa como se fosse disputa de cinturão. Eu queria tanto aquela vitória, quase como se fosse comigo. Era pessoal.
Mas não veio. Novamente, Lyoto pagava pela sua diferença. O tal “controle do octógono”, parece, significava ficar no centro dele. Miopia, se me perguntarem, mas os critérios são esses. Rondando, contra-atacando, “comendo pelas beiradas”, Machida mesmo sem querer estava abrindo mão dessa pontuação. E lá foi para sua segunda derrota. E o mundo falando “poxa, acho que ele não era lá aquelas coisas pra início de conversa”. TOLINHOS.
Aí que começa a parte feliz da história. Eu quase queria que Lyoto se aposentasse hoje. Por mais que seja horrível pensar em não vê-lo em ação de novo, eu queria que as pessoas guardassem ele como foi no UFC 129. Um primeiro round exemplar, que pra um desavisado parecia quase sem graça, mas que pra um fã do Lyoto estava bem claro. Virei pros meus amigos, já naquelas palavras meio emboladas de álcool (não consigo mais ver Lyoto de cara limpa, é nervoso demais), “vocês vão ver só. Ele achou o Couture e vai voltar pro segundo prontinho pra dar o bote”. Ninguém entendeu nada. Não entenderam porque eu estava longe de todo mundo, de pé, roendo unha (achei que tivesse parado com esse hábito, inclusive), vendo nervosa. E aí veio aquele chute. Nas palavras do Alexandre:
“Chute frontal voador, chute da gaivota, golpe da garça, mae tobi geri. Chamem do que quiser. Eu chamo de genialidade. Com um chutaço que explodiu na ponta do queixo, Lyoto mandou um dente de Couture pro espaço e apresentou a aposentadoria à lenda.”
Meio desconjuntada, gritei muito mesmo, de maneira ridícula, como se fosse gol do Flamengo na final da Libertadores (me deixa sonhar de novo, vai). Mais ainda. Não sei nem explicar o porquê, mas aquilo me vingou. Vingou todas as vezes que tive que falar pra alguém “cala a boca, hater, o Lyoto é foda”. Assim mesmo, super articulada. Não se mexe com Lyoto comigo, todo mundo sabe disso. Não se torce contra ele na minha presença, e não se assiste a luta dele comigo sem vestir a camisa. Viro criança mongol, irracional, torcedora mesmo. Detesto a irracionalidade esportiva, odeio gente perdendo a razão. Mas a gente sempre perde, né? Cedo ou tarde. Com Lyoto, falo com orgulho que não quero ter razão. Ele é foda, digdin digdin, e ai de quem ousar falar o contrário.
Infrutífero é tentar comparar chutes de Anderson e Lyoto. Os dois foram lindos, plásticos, com ares de cinema. Mas o quão lindo é ver o carateca calar o bullying do mundo com o golpe que vingou o imortal Daniel LaRusso? Lyoto mandou o velhinho – com todo respeito – pra aposentadoria, com uma derrota a mais e um dente a menos. Randy, se vocês não lembram, foi quem pediu Lyoto. E foi o que recebeu. Cada um tem o desfecho que merece, e, bem ou mal, o Natural saiu com um final digno de Hollywood. Final com gosto de redenção para Lyoto, que parece ter encontrado, enfim, o almejado equilíbrio. Arquitetou como sempre, mas sem se deixar pensar demais. Adotou a cautela de sempre, mas sem se segurar demais. Reencontrou seu jogo, seu estilo, e, a julgar pelos olhinhos brilhando, o júbilo de lutar.
“Equilíbrio é chave. Equilíbrio bom, karatê bom. Tudo bom. Equilíbrio ruim, melhor arrumar as malas e ir pra casa. Entende?”
Sim, Sr. Miyagi, acho que Lyoto-San entendeu bem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário